“NUMA FOTOGRAFIA” DE EUGÉNIO DE ANDRADE
Centenário do nascimento de Eugénio de Andrade (19 de janeiro de 1923, Póvoa da Atalaia, Fundão – 13 de junho de 2005, Porto).
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Numa fotografia
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Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.
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Eugénio de Andrade, O outro nome da terra, 1988
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Alfredo Cunha, Eugénio de Andrade, Porto, 1998
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[Passamos pelas coisas sem as ver]
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Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos:
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão apodrecidos.
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Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos, 1948
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António Pedro Ferreira, Eugénio de Andrade
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As Palavras
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São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
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Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
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Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
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Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
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Eugénio de Andrade, O Coração do Dia, 1958
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Manuel Roberto, Eugénio de Andrade
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Urgentemente
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É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
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É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
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É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
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Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
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Eugénio de Andrade, Até Amanhã, 1956
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João Paulo Coutinho, Eugénio de Andrade, 25.05.2001
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É impossível ler apenas um poema.
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Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade
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Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 de janeiro de 1923, em Póvoa da Atalaia, no Fundão.
A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa, frequenta o Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro. Era comum vê-lo a deambular pelas bibliotecas públicas, tornando-se o leitor que se tornou, até começar a escrever os primeiros versos. Aos 15 anos, enviou alguns ao poeta e dramaturgo António Botto, que o quis conhecer; um ano depois, publica “Narciso”, o primeiro poema, surge a necessidade de um nome literário, um nome dado a si mesmo: Eugénio de Andrade.
Vai para Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945, convive com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. Em 1947 entrou para a função público, para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa, sendo em 1950 transferido para o Porto, onde fixou residência.
Manteve sempre uma postura de independência relativamente aos vários movimentos literários com que a sua obra coexistiu ao longo de mais de cinquenta anos de atividade poética.
Embora não se integre em nenhum dos movimentos literários que lhe são contemporâneos, não os ignorou, mostrando-se solidário com as suas propostas teóricas e colaborando nas revistas a eles ligadas, como Cadernos de Poesia; Vértice; Seara Nova; Sísifo; Gazeta Musical e de Todas as Artes; Colóquio, Revista de Artes e Letras; O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura, entre outras.
É autor de uma importante obra poética: Adolescente (1942); As Mãos e os Frutos (1948); Os Amantes sem Dinheiro (1950); As Palavras Interditas (1951); Até Amanhã (1956); Conhecimento da Poesia (1958); O Coração do Dia (1958); Os Afluentes do Silêncio (1968); Obscuro Domínio (1971); Limiar dos Pássaros (1972); Véspera da Água (1973); Memória de Outro Rio (1978); Matéria Solar (1980); O Peso da Sombra (1982); Poesia e Prosa, 1940-1989 (1990), O Sal da Língua (1995), Alentejo (1998), Os Lugares do Lume (1998) e Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa (1999), Os Sulcos da Sede (2001).
Organizou outras antologias, como a que dedicou ao Porto: Daqui Houve Nome Portugal (1968) e a Antologia Breve, dedicada a Coimbra (1972), que integram poesia, prosa, fotografia e pintura.
Além de vasta obra poética, Eugénio de Andrade publicou alguns livros em prosa, designadamente “Os afluentes do silêncio”, “História de égua branca”, com ilustrações de Manuela Bacelar, “Rosto precário” e “À sombra da memória”. Fez também traduções de Federico García Lorca, de Iannis Ritsos, das “Cartas Portuguesas (atribuídas a Mariana Alcoforado)” e de “Poemas e fragmentos de Safo”.
Escreveu também livros para crianças. É um dos poetas portugueses mais traduzidos.
Em 1982, o Governo português atribuiu-lhe o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito em 1988. Em 1983, recebeu o Prémio Seiva de Literatura; em 1985, o Prémio Pen Clube; em 1986, o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários e o Prémio da Associação Internacional dos Críticos Literários; em 1988, o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores; em 1989, o Prémio Jean Malrieu (França); em 1991, o Prémio APCA (Brasil); em 1996, o Prémio Europeu de Poesia da Comunidade de Varchatz (Jugoslávia), em 2000, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, entregue pelo Presidente da República, o Prémio Extremadura de criação literária; em 2021, o Prémio Celso Emilio Ferreiro (Espanha), para autores ibéricos; em maio, foi homenageado no Carrefour des Littératures (França) e em julho, o Prémio Camões, do qual se mostrou satisfeito, quer pelo prestígio do galardão, quer por ver o seu nome associado ao de Luís de Camões e o Prémio P.E.N., entre outros.
Apesar do seu prestígio nacional e internacional, viveu sempre distanciado da vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”.
Morreu a 13 de junho de 2005 no Porto, depois de anos de prolongada doença degenerativa neuromuscular, cidade que o acolheu mais de metade da sua vida. Encontra-se sepultado no Cemitério do Prado do Repouso, no Porto, tendo a sua campa sido desenhada pelo arquiteto e seu amigo Álvaro Siza, incluindo a inscrição de versos do seu livro “As Mãos e os Frutos”.
Na sua casa, na Foz do Douro, no Porto, funcionou a Fundação Eugénio de Andrade. Após a sua extinção, em 2011, esta passou a ser a Casa da Poesia Eugénio de Andrade, foi cedida em 2020 à União das Autarquias de Aldoar, Foz, Nevogilde. Por sua vez, o acervo do poeta foi em dezembro de 2022 depositado na Casa dos Livros.
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Eugénio de Andrade *
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O Museu da Cidade do Porto homenageia Eugénio de Andrade, assinalando o centenário do seu nascimento com a exposição “Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos – Ciência Suprema”, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, na Rua de Dom Manuel II, tendo por ponto de partida o espólio manuscrito, fotográfico e editorial cedido em 2020 ao Município do Porto. A exposição inaugura em 19.01.2023.
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Transcrevi os poemas de: Eugénio de Andrade, “Poesia”. Vila Nova de Gaia: Rosto Editora / Modo de Ler, 2011.
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* Não consegui perceber qual o autor de cada uma destas fotografias. Se entretanto identificar, referirei. As minhas desculpas aos autores e aos leitores.
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